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Jornal em Rondônia divulga “cura” da COVID-19

A mistura de dois remédios tomados com água de coco foi a fórmula propagada pela Folha do Sul Online. É possível que essa combinação, embora com mais efeitos colaterais, apresente tanta efetividade quanto ficar de repouso em casa à base de água, ou de tubaína, como receitou ao seu povo o militar que comanda o Brasil, do alto dos seus interesses econômicos e políticos escusos. Com base apenas no testemunho dos envolvidos, esse “jornalismo declaratório” sustenta-se apenas na fala do entrevistado, sem comprovação ou investigação sobre a veracidade do fato, contribuindo para a diminuição da credibilidade da instituição jornalística.

A divulgação da “cura” contraria uma publicação do mesmo dia do jornal, quando informou que o governo de Rondônia enviou o tal remédio para pacientes infectados, em oposição aos cientistas, para quem “o medicamento não tem eficácia no tratamento da Covid-19”. Na produção, o conhecimento dos pesquisadores é contraposto às opiniões dos “aliados de Bolsonaro”. Mesmo com a impossibilidade de verificar a eficácia daquele tratamento, caberia ao jornal entrevistar especialistas sobre o assunto, um tipo de fonte essencial para a pauta em questão, não se restringindo aos testemunhos que comprovam no máximo a existência do acontecimento, mas não atestam a validade da medicação.

Em caso de constrangimentos da rotina produtiva ao ponto de não permitir uma apuração adequada, poderia ao menos citar as pesquisas científicas que contraindicam o medicamento, fácil e rapidamente acessíveis; é consenso que a internet oferece amplas oportunidades para os trabalhos jornalísticos de verificação e divulgação. Até o momento, pois a ciência é refutável, mais do que não indicar o “remédio do presidente”, os pesquisadores o contraindicam. Enquanto no primeiro caso se trata de não avaliação, no segundo, as investigações já existem, mas sem resultados satisfatórios.

A matéria é ainda mais problemática ao deter-se unicamente em seu aspecto singular, como se o fato estivesse em uma bolha deslocada das questões mais amplas da sociedade, de uma particularidade regional ou de uma universalidade mais abrangente. Essas produções têm como sua primeira etapa a apuração, que envolve comumente documentos e entrevistas. Este processo não se restringe somente à captação da informação, pois precisa passar por uma avaliação de veracidade, ou seja, se ela é procedente, verossímil, especialmente no caso da cura de uma doença que aflige o mundo com uma pandemia. O jornalismo possui responsabilidade social com seu produto, que tem como matéria prima a realidade dos fatos, lapidada por meio de técnicas desenvolvidas após experimentações teórica e prática.

Em Rondônia, vive-se, metaforicamente, um combate semelhante aos eternizados por Uderzo e Goscinny nos quadrinhos de Asterix e Obelix. Os gauleses dos trópicos se voltam contra o império ‘científico’ romano. Os cientistas do mundo inteiro contraindicam a droga, mas “uma pequena aldeia ainda resistia”, também no interior e no oeste; infelizmente, para o país, ela não é a única a resistir, o anticientificismo está espalhado por toda a nação. Os casos de teimosia, entretanto, parecem mais pungentes nas “periferias” (não centrais) desses interiores, ou seja, no interior do interior, chamado de “Brasil profundo”, agarrados e arraigados em mitos e messias, religiosos ou personificados.

 

Allysson Martins é jornalista, professor e pesquisador do MíDI – Grupo de Pesquisa em Mídias Digitais e Internet da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

 

Para conhecer
Adelmo Genro Filho. O segredo da pirâmide.
Cremilda Medina. Notícia: um produto à venda.
Israel de Oliveira. Jornalismo declaratório.
Jorge Pedro Sousa. Teorias da notícia e do jornalismo.
Nilson Lage. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística.
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