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Disruptiva é a Constituição de 1988, não a Inteligência Artificial

por Marcus Vinícius Xavier de Oliveira*

Um dos maiores privilégios que a vida universitária nos dá é a possibilidade de participação em eventos de pesquisa, seminários e congressos nos quais, pesquisadores e palestrantes, dos mais variados campos do conhecimento, expõem, com elevado grau de competência científica e a necessária capacidade argumentativa, discussões e teses sobre os mais variados e importantes temas.

Se pode afirmar, de fato, que a força motriz da vida universitária adequa-se perfeitamente àquele belíssimo poema de Horácio: “immotus nec iners”, como seja, “imóvel, mas não inerte”.

Esse preâmbulo serve de leitmotiv para apresentar uma discussão acerca do papel que a Inteligência Artificial (IA) tem desempenhado no âmbito das discussões contemporâneas, em particular a partir da ideia de sua disruptividade. Ela foi discutida por um estimado colega do Departamento Acadêmico de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia, que a apresentou na forma de palestra por ocasião do IX Seminário Temático Contábil organizado pelo Departamento de Ciências Contábeis no mês de setembro de 2023 sob o tema geral “Disrupção na educação: inovação, desenvolvimento e o papel da Universidade”.

A relevância da temática, assim como a notável qualidade da apresentação, suscitou este alargado processo de reflexão sobre as implicações da IA no âmbito do mundo do trabalho em geral, e das profissões jurídicas em particular, as quais procurarei resumir nas linhas que seguem.

A primeira reflexão se relaciona ao uso da expressão disruptiva para referir-se à IA.

Sem ingressar em tema tão árido como o de se procurar saber se a IA pode, de fato, ser considerada como inteligência nos sentidos gnosiológicos e epistêmicos, sempre associados à pessoa humana e à sua capacidade inata de adquirir, ao longo da vida, novos conhecimentos, capacidades técnicas e ações por meios de processos educacionais os mais variados, associados, pois à sociabilidade e busca por desenvolvimento individual e/ou coletivo, é fato que esta expressão – tão prenhe de significados e contextualizações – tem suscitado uma série de aplicações nos campos das ciências, do comércio e do mundo digital em razão do progressivo desenvolvimento dos aplicativos computacionais que funcionam sob a seguinte lógica: um dispositivo artificial – máquina e/ou aplicativo – que tenha a capacidade de, em sentido forte, adquirir conhecimento e resolver problemas de forma autônoma, ou, em sentido fraco, simular ações e atividades humanas.

Na primeira, entende-se a possibilidade de desenvolvimento da IA como sistema autônomo que, partindo de um estado inicial, tem uma linha de fuga ilimitada, com a clara possibilidade de superação da espécie humana, e que, num recorte negativo, é apresentado como possibilidade distópica pelas mais variadas obras de ficção científica. Na segunda, uma limitação que se funda em dois pensamentos distintos. O primeiro, que se pode denominar de inatismo, concebe a expressão inteligência como manifestação puramente humana; outra, de caráter funcional, entende que esses programas podem, quando muito, plagiar o pensamento humano já produzido, sem condições, portanto, de inovação e criação autônoma.

Nesse segundo campo, disse Chomsky, Roberts e Watummul sobre os programas de IA, que operam segundo o modelo de aprendizado-máquina.

O ponto crucial do aprendizado de máquina é a descrição e previsão; ele não sugere quaisquer mecanismos causais ou leis físicas. Claro, qualquer explicação em estilo humano não é necessariamente correta; somos falíveis. Mas isso faz parte do que significa pensar: para estar certo, deve ser possível estar errado. A inteligência consiste não apenas em conjecturas criativas, mas também em críticas criativas. O pensamento no estilo humano se baseia em possíveis explicações e correção de erros, processo que gradualmente limita as possibilidades que podem ser consideradas racionalmente. (Como Sherlock Holmes disse ao Dr. Watson: ‘Quando você elimina o impossível, o que resta, por mais improvável que seja, deve ser a verdade'”, disseram os autores na Folha de S. Paulo.

Em uma síntese possível, as grandes diferenças entre inteligência humana e a artificial se dá: a) pela seletividade humana e a ilimitação da artificial; b) pela crítica e criatividade humana, construção de padrões analíticos sem necessária correlação com a realidade na artificial; c) pela falibilidade, aprendizado e desenvolvimento progressivo na humana; aplicação do padrão, independentemente de certo ou errado, pela artificial.

Seja em sentido forte ou em sentido fraco, a atribuição da qualidade de disruptivo à IA pode conotar duas coisas bastantes diferentes: na forte, a superação do humano pela máquina; no fraco, o aperfeiçoamento dos sistemas produtivos e de trabalho, com ganhos econômicos, mas não necessariamente humanos.

Se disruptivo significa revolucionário, é óbvio que a IA deva ser encarada como tal.

O segundo ponto da presente reflexão se prende à tentativa de compreender se essa disruptividade deve ser entendida em recorte positivo e/ou negativo. E por que esse questionamento? Bom, qualquer pessoa que tenha um mínimo de conhecimento da história humana sabe que revoluções não se constituem em processos históricos de soma zero para todas as pessoas. Com efeito, nelas, o “chicote sempre muda de mão”. Assim, na disruptividade prometida pela IA, quem ganha e quem perder?

Talvez a pergunta não exija uma resposta no tipo ou-tudo-ou-nada, mas, com certeza, uma necessária ponderação entre perdas-e-ganhos.

Sob uma perspectiva positiva, parece bastante óbvio que o progressivo desenvolvimento da IA tem permitido o desenvolvimento de novos modos de produção, economia de tempo na realização de atividades e respostas a problemas etc. Um exemplo dentre os muitos: um dos princípios elementares da comunidade científica e a presunção de boa-fé na realização das atividades a ela associadas, bem como a necessidade de se reprimir práticas predatórias e más condutas, como o plágio, o autoplágio, falsificação de dados e resultados etc.

Pois bem, segundo a Fapesp,

A quantidade de artigos científicos fraudulentos produzidos pelas chamadas fábricas de papers pode ser maior do que se calcula. Uma análise feita por um software de inteligência artificial rastreou cerca de 400 mil artigos publicados nas últimas duas décadas cujos títulos e resumos contêm semelhanças estilísticas com os de trabalhos comprovadamente falsificados. Desse total, 70 mil artigos foram publicados no ano passado. Segundo a avaliação, entre 1,5% e 2% de todos os artigos produzidos em 2022 têm aspectos em comum com papers forjados – esse índice chega a 3% entre os trabalhos de biologia e medicina”, afirmou em seu Caderno Boas Práticas.

O processo de revisão de 400 mil artigos científicos, se feito por mãos e cabeças humanas, demandaria uma quantidade considerável de pessoas, de tempo, de recursos econômicos, quanto mais pela necessidade de se revisar os resultados dos revisores. Com o uso de IA, chegou-se a um resultado aproximado em razão da aplicação identificar padrões e catalogar os trabalhos que os tenha, dando uma dimensão aproximada do mal comportamento no contexto de uma atividade que, como dito, pressupõe a boa-fé, já que “A ferramenta não garante que um manuscrito é fabricado, mas aponta artigos que merecem uma investigação mais aprofundada antes de ser aceitos para publicação”.

Já sob uma abordagem negativa tem-se o surgimento de novos modos de perpetuação para velhos problemas, como, por exemplo, a ideia tão antiga como o próprio mundo de descartabilidade da vida humana. Com efeito, é dito com muita naturalidade que a IA eliminará milhares e milhares de postos de trabalho, mediante a substituição do trabalho humano pelo de máquinas.

Segundo pesquisa desenvolvida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 27% dos postos de trabalho no mundo poderão ser substituídos pela IA, levando uma multidão ao desemprego ou ao subemprego. Para Mathias Cormann, os governos “precisam preparar os trabalhadores para as mudanças e oportunidades que a IA trará”.

Interessante que o representante de uma Organização Internacional se preocupe NÃO com a proteção do espaço de trabalho – que, segundo Marx em O Capital, é a única atividade humana que efetivamente produz valor –, mas de uma possibilidade, sempre fugidia, de compatibilização entre aquilo que o extingue e a ânsia infinita pelo lucro das corporações.

Aqui, penso eu, ingressa a compreensão acerca da genuína disruptividade da Constituição Federal de 1988, promulgada no longínquo ano de 1988 de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando a coisa mais próxima ao que hoje ocorre se passava nas telas do cinema com 2001, Uma Odisseia no Espaço, com Hal1000 tentando dominar a espaçonave, ou O Exterminador do Futuro, e a sua busca pela eliminação da Sarah Connor.

Com efeito, a Constituição brasileira, tão xingada e maltratada por muitos, em seu artigo 7º, XXVII – o artigo que trata dos direitos individuais dos trabalhadores –, estabeleceu que o Estado deve exercer a “proteção [do mercado de trabalho] em face da automação, na forma da lei”.

Logo, constitucionalmente falando, o trabalho – direito humano – precede, em importância, à livre iniciativa – liberdade econômica –, devendo o Estado brasileiro regular o uso da IA tendo como móvel o difícil equilíbrio entre preservação do mercado de trabalho e o desenvolvimento tecnológico.

Nesse sentido, disruptiva é a Constituição, não a IA, quanto mais porque, ao determinar a preservação do trabalho em face da automação, privilegiou a dignidade humana da descartabilidade promovida pelo mercado e empresas tecnológicas.

 

* Professor de Direito e líder do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional na UNIR – Universidade Federal de Rondônia. Membro do Ramo Brasil da International Law Association.

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