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Constituição completa 33 anos… e agora?

Em 05 de outubro de 1988, o Congresso Nacional brasileiro, reunido em Assembleia Nacional Constituinte, promulgou, sob a presidência do Deputado Federal por São Paulo, Ulysses Guimarães, a Constituição da República Federativa do Brasil, por ele nomeada Constituição Cidadã.

O Brasil acabara de sair de um de seus períodos mais duros, que foi o da ditadura civil-militar que durou de 1964 a 1985, sendo que a promulgação da Constituição difundiu a esperança de vida democrática plena, em que as liberdades fundamentais, os direitos sociais e o respeito à diversidade político-cultural se fariam presentes de forma indelével na forma do Estado Democrático de Direito.

De fato, o período histórico que o Brasil suportou entre 1964 e 1985 foi de profundas trevas e violência sistêmica naquilo que se convencionou chamar de Terrorismo de Estado: mandatos foram cassados, juízes e professores aposentados compulsoriamente, mortos e desaparecidos às centenas e torturados aos milhares. Pela incompetência genética dos militares em matéria econômica, o Brasil padeceu suas mais graves crises econômicas, com hiperinflação que somente foi debelada, de fato, com o Plano Real em 1994, isto é, em plena democracia constitucional. E por fim, mas não menos grave, uma corrupção sistêmica que jamais foi denunciada em sua época pelo uso e abuso das censuras tão próprias a uma ditadura, quando não do puro e simples assassinato, como foi o caso do diplomata brasileiro José Jobim, morto por agentes do Estado porque era conhecedor dos casos de corrupção praticados durante a construção de Itaipu.

Sintomático, nesse sentido, que o último Presidente militar, Gal João Batista Figueiredo, preferisse o cheiro dos cavalos ao povo e tenha saído pela porta de trás do Planalto, a fim de não transferir o poder ao Presidente empossado, José Sarney.

Há quem hoje, animado pelo Tiozinho do Zapzap que exerce (se bem que empregar a palavra “exercer”, que denota atividade e trabalho, é forçar a barra com Bolsonaro, a epítome do malandro que não trabalha e vive às custas do dinheiro público brasileiro) a função de Presidente da República, empolgue-se a cantar em verso e prosa os “bons tempos da redentora” (que é como os velhinhos dos círculos e clubes militares chamam o golpe de estado de 1964). Vejam, há quem cante e verso e prosa as vantagens de uma operação de hemorroida ou uma marretada no dedo, sendo isso uma questão de (des)gosto particular, pois no referente às trevas da ditadura, não se trata de opinião legítima, mas distorção histórica, pois não há fato ou ato praticado durante esse período que possa ser identificado como algo efetivamente bom.

Peguemos um exemplo. O assim referido herói de Bolsonaro, o Cel. Brilhante Ustra, foi formalmente reconhecido por sentença transitada em julgado como um dos torturadores mais brutais do subsistema de repressão DOPS-DOI-COD, havendo provas de que inseriu ratos vivos nas vaginas e nos ânus de presas, além de sequestrar crianças para verem os pais sendo torturados, o que foi concebido como um modo de quebrar o ânimo daqueles que resistiam à colaboração.

É óbvio ululante que uma pessoa assim somente pode ser herói de um degenerado igual ou pior a ele, e o mínimo que poderíamos exigir, conforme nos ensina Hannah Arendt, é

[…] nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós […] [Pois] A partir da recusa ou da incapacidade de escolher os seus exemplos e a sua companhia, e a partir da recusa ou incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal (Responsabilidade e Julgamento, 2003, p. 212).

Como em 2018 escolheu-se, pelas virtudes e vicissitudes do regime democrático inaugurado em 1988, que o skandala não somente nos governasse, mas também operasse escancaradamente na tentativa de derruir a democracia e o Estado de Direito, com ampla cooperação daquele a quem se tem chamado com muito justiça de Poste Geral da República, bem como dos presidentes das casas congressuais, elevando a graus nunca vistos o estresse do sistema político, ao qual se somou, ainda, a gravidade da pandemia da COVID 19 e os quase 600 mil mortos e a crise econômica, muitos dizem: estamos acabados! Vivemos sob uma ditadura! Tchau Constituição de 1988.

A estes é preciso que se diga o mesmo que López Aranguren um dia afirmou na Espanha franquista em 1966 – portanto, onze anos antes da transição democrática que formou o atual estado espanhol:

La democracia no es un status en el que puede un pueblo cómodamente instalarse. Es una conquista ético-política de cada día, que sólo a través de una autocrítica siempre vigilante puede mantenerse, como decía Kant de la moral en general, una tarea infinita en la que si no se progresa se retrocede, pues incluso lo ya ganado ha de reconquistarse cada día […] La democracia nunca puede dejar de ser lucha por la democracia […] antes y más profundamente que un sistema de Gobierno es un sistema de valores que demanda una reeducación político-moral […] (Ética y política, 1966)

Sábias as palavras: queremos manter as conquistas obtidas com a Constituição de 1988, aperfeiçoá-las e expulsar da facticidade histórica as potências destrutivas que corroem nossa civilidade, nossa democracia, nosso moral? Retomemos o ponto inicial. Retomemos o que Ulysses Guimarães afirmou naquela tarde de 5 de outubro em seu discurso:

[…] A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina. […]

Digamos, pois, juntos: viva a Constituição de 1988!

 

Marcus Oliveira é professor de Direito e coordenador do Jus Gentium na UNIR.

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